Em documento oficial que integra o parecer de reconhecimento da Irmandade da Nossa Senhora da Boa Morte de Cachoeira como patrimônio imaterial, os signatários, usando informações de memorialistas e pesquisadores mais antigos, afirmam que já havia em Salvador , no século XIX, uma devoção de cor, exclusivamente feminina, constituída sob invocação de Nossa Senhora da Boa Morte. Ela funcionava na Igreja da Barroquinha e era responsável pela Festa da Assunção da Virgem, celebrada no dia 15 de agosto para marcar a subida ao céu da Virgem Gloriosa e era considerada “ a mais concorrida, de mais extenso percurso e mais aparatosa apresentação das procissões que já se fizeram na Bahia”.
Por trás das festas e procissões, no caso da Barroquinha, negras devotas e crioulas, socialmente ascendentes, chamadas de “negras do partido alto”, “enérgicas e voluntariosas”, destaca o etnógrafo franco-baiano Pierre Verger. Personagens diferenciadas em meio ao cenário escravista urbano produzidas pelas frestas muito limitadas do sistema de estratificação estamental que aqui e ali, apresentava fissuras e permitia que alguns escapassem do rígido regime de opressão.
Essas mulheres especiais irromperam na cena urbana do Brasil escravista integrando uma espécie de elite negra cujas habilidades para o comércio deitavam raízes nas suas terras de origem, onde se associavam publicamente tanto para fins mundanos quanto para cultuar deusas-mães iorubanas que no Brasil escravista, sob a forma de sociedade secreta – Gueledé- , não apenas persistiu na clandestinidade, como mediante o mecanismo do sincretismo, ganhou espaço próprio em irmandades como a da Boa Morte.
A Irmandade cachoeirana é uma congênere da Irmandade da Nossa Senhora da Boa Morte cultuada na Igreja da Barroquinha, em Salvador. Esta, relacionada com a Irmandade do Senhor Bom Jesus dos Martírios, fundada em meados do século XVIII por um grupo de crioulos, provavelmente descendente de africanos da Costa da Mina e que, após passagem pela capela de Nossa Senhora do Rosário das Portas do Carmo, acabou se instalando na Igreja de Nossa Senhora da Barroquinha, em 1764, informa Renato da Silveira. A de Cachoeira, com a Irmandade de Bom Jesus da Paciência. Todas, irmandades negras e muito ligadas aos cultos africanos.
O fato é que essas negras de “partido alto” compunham um segmento minoritário mas distinto, de pessoas de cor que se destacavam não apenas pelo seu elegante vestuário, mas pelos adereços, balangandãs, joias e torços que, sem dúvida, demarcavam com fortes elementos simbólicos o status diferenciado que gozavam por sua avantajada posição social e pela explícita vontade que tinham de demarcar tal situação. Para usar uma expressão moderna, as negras de “partido alto” inauguraram nas duras condições sócio-raciais do escravismo o discurso auto-afirmativo ou identitário, combinando a imponência do vestuário com a preservação de seus valores ancestrais. A pompa, o fausto e a prodigalidade dessas mulheres, sobretudo durante cerimônias e festejos públicos, foram estudadas por Vanhise da Silva Ribeiro, na sua dissertação de Mestrado intitulada muito apropriadamente “Tessituras da Fé: Sacralidade e Estetização do Vestuário nas Festividades da Boa Morte”.
O predomínio feminino principiou no primeiro candomblé urbano de Salvador, o da Barroquinha e a tradição oral privilegia os nomes de três dessas precursoras como fundadoras do culto: Iyá Adetá, Iyá Akalá e Iyá Nassô. Vivaldo Costa Lima confirma isso em seu livro “A família de santo nos candomblés Jêjes-nagôs da Bahia”, apoiando-se em informações de Edson Carneiro. Daí, esse poder feminino se projetou para outros terreiros tradicionais, a ponto de Ruth Landes afirmar que, em 1930, já havia a predominância delas no Gantois ( llê Iyá Omim Iyá Massê ) e no Ilê Axé Opô Afonjá. “Embora alguns homens se tornem sacerdotes, a razão, ainda assim, diz a estudiosa, é de um sacerdote para 50 sacerdotisas”.
Wiltércia Silva de Souza, que realizou cuidadosa revisão bibliográfica sobre o tema, informa que Terezinha Bernardo, na década de 1980, reiterou o papel destacado das sacerdotisas no candomblé, ressaltando que um dos pressupostos está ligada à preservação da memória ( veja-se o caso do personagem Dadinha, de João Ubaldo Ribeiro no livro Viva o Povo Brasileiro, que é a guardiã da história de várias gerações de pessoas na Ilha de Itaparica ), sobretudo no que se refere à tradição oral africana.
“Além de serem as donas da memória, outra característica associada a essas mulheres é que ocupavam o espaço público no seu cotidiano. Eram, especialmente, negociantes informais, trabalhando em feiras, com seus tabuleiros ou ainda, abrindo pequenos negócios. Terezinha Bernardo associa essa característica a uma ascendência africana afirmando que a atividade de troca que ocorre nas feiras parece ser de importância inconteste para as mulheres iorubanas do século XVIII.
Nas recriação brasileira dessas atividades, em pleno período escravista, a mulher livre africana aparece sob a figura da ganhadeira, escrava ou livre, figura que em muitas regiões se torna a principal responsável pela distribuição de gêneros alimentícios e que ocupa papel de destaque no pequeno negócio. A condução bem sucedida desse negócio às vezes assegurava a compra de alforria ou a sua ampliação.
Cecília Moreira Soares observa que “as relações escravistas nas ruas de Salvador do século XIX se caracterizavam pelo sistema de ganho. No ganho de rua, principalmente através do pequeno comércio, a mulher negra ocupou lugar destacado no mercado de trabalho urbano. Encontramos tanto mulheres escravas colocadas no ganho por seus proprietários, como mulheres negras livres e libertas que lutavam para garantir o seu sustento e de seus filhos”. Elas também desempenhavam funções outras como amas, lavadeiras, cozinheiras e operárias.
Duplamente submetidas, estiveram longe, se vê, da completa subserviência. Aonde a rigidez escravista permitiu, elas furaram o bloqueio se insinuando na vida social, econômica e, principalmente na vida religiosa ligada aos seus cultos ancestrais. Sim, porque na vida religiosa católica os espaços a elas conferidos sempre foram subalternos. Exceção da Irmandade da Nossa Senhora da Boa Morte.