A história da Irmandade da Nossa Senhora da Boa Morte deita raízes na maciça importação de mão-de-obra escrava da África para o Recôncavo canavieiro da Bahia. O fato de ser uma associação leiga composta exclusivamente de mulheres negras, numa sociedade patriarcal e marcada por forte contraste racial e étnico, fez da Irmandade um caso único no catolicismo do Brasil. Entre a grande quantidade dessas instituições religiosas existentes no país, nenhuma possui as características da Irmandade da Nossa Senhora da Boa Morte de Cachoeira, seja no que se refere à sua condição de gênero, seja no que se refere às suas íntimas articulações com o candomblé.
Organizada num contexto histórico marcado por intensos conflitos sociais decorrentes das lutas anti-coloniais e anti-escravistas, a Irmandade da Boa Morte projetou-se como associação leiga desvinculada da estrutura canônica, sobretudo, por suas festas e procissões de agosto, iniciadas na Igreja da Barroquinha, em Salvador, e depois fixadas como tradição cultural e religiosa em Cachoeira. A pompa, a imponência do vestuário das irmãs, as joias e balangandãs das “negras de partido alto”, conferiram a essa devoção afro-barroca rara singularidade, chamando atenção de tantos quantos participam dos ritos de dormição de Maria e assunção da Virgem, para a originalidade dessa manifestação ímpar do sincretismo religioso baiano.
Como não registrou estatutos ou preservou quaisquer documentações originais, não se sabe ao certo a data exata de sua constituição como associação leiga. Essa informação continua a desafiar a investigação dos pesquisadores e quem sabe algum dos quatro cartórios de registro cível da cidade, ou mesmo os exemplares dos mais de 130 jornais editados a partir de 1817, ou mesmo os arquivos eclesiásticos, não elucidem tal questão.
Odorico Tavares é da opinião que a Irmandade data de 1820, tendo sido um desdobramento da congênere da Salvador que funcionava em um altar lateral da Igreja de Nossa Senhora da Barroquinha e apoiada na Irmandade do Senhor Bom Jesus dos Martírios, de crioulos, cuja origem remonta a meados do século XVIII. Desse núcleo religioso afro-brasileiro nasceram os mais tradicionais candomblés urbanos do Brasil. Outros pesquisadores enquadram a Irmandade da Boa Morte no quadro da inquieta conjuntura das três primeiras décadas do século XIX, repleta de revoltas, rebeliões, levantes, fugas de escravos e agitado momento político cujo pano de fundo era a luta pela independência do país e pela libertação dos negros do cativeiro da escravidão.